terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Demónios depiladores

"Há outros desta espécie [demónios terrestres], que frequentam casas abandonadas, chamados foliots pelos italianos, na sua maioria inócuos, como sustenta Cardano: "Fazem estranhos ruídos à noite, às vezes uivam lastimosamente, e depois riem outra vez, causam grandes labaredas e luzes repentinas, apedrejam, fazem soar correntes, rapam os homens, abrem e fecham portas, atiram travessas, bancos, caixas ao chão, às vezes aparecem na forma de lebres, corvos, cães pretos, etc.".

in Robert Burton, Anatomia da Melancolia

domingo, 28 de janeiro de 2018

Construir uma convicção


Quando leio Benjamin a descrever o interior do mar de igrejas ortodoxas de Moscovo penso em como a escrita foi/é um meio, até certo ponto limitado, para dar a ver as imagens que o seu autor queria transmitir. Aqui são as regras da gramática, as palavras, o desvio necessário, inevitável, aos pensamentos que um escritor nos quer deixar. Por outro lado, sabemos, as palavras são a forma mais adequada que conhecemos de expressão de uma interioridade. Já a exterioridade pela palavra, mesmo na mais vívida descrição realista, surge como impotente aproximação à tradução directa do que o olho e o cérebro registam. No cinema, o oposto é o que acontece. A exterioridade sai mais beneficiada do que a interioridade. Mas mesmo naquela o desvio é operado pela máquina que capta mecanicamente, pela incapacidade que temos de usar a mão para manipular a máquina numa exacta tradução directa da nossa vontade, ou mais, do nosso pensamento. Por isso, a sétima arte não deixa de efectuar operações de tradução, mais ou menos metafóricas ou simbólicas, entre a interioridade e a vida, os objectos e a natureza. Mesmo quanto à vontade de equiparação entre o que o sujeito quer e o que consegue arrancar à natureza, entre o que o sujeito vê e o que a câmara vê, nessa dupla asserção, é ainda uma mera aproximação aquilo do que se trata. Em qualquer dos casos – na escrita ou no cinema - a boa probabilidade da comunicação torna estes desvios em monumentos de falibilidade, em espaços de construção de um discurso sobre o “como se”, e o “e se”. É só nesse intervalo da aproximação que nos é permitido brincar e só nesse nos sentimos bem. Uma total segurança do real destruiria a capacidade de construir uma convicção. 

sábado, 27 de janeiro de 2018

Droga do abandonado

“A multidão não é apenas o novo asilo do proscrito: é também a última droga do abandonado. O flaneur é um homem abandonado no meio da multidão. Isso coloca-o na mesma situação da mercadoria.”

Walter Benjamin em "Charles Baudelaire. Um poeta na Época do Capitalismo Avançado". 

Sífilis nos ossos

“De toda a política só compreendo uma coisa: a revolta” (...) “todos temos no sangue espírito republicano, tal como temos a sífilis nos ossos; estamos infectados de democracia e sífilis.”

Gustav Flaubert citado por Walter Benjamin em "Charles Baudelaire. Um poeta na Época do Capitalismo Avançado".

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

"A noite passada, às duas, o cão que está sempre a ladrar no apartamento por cima do meu parou de ladrar. Os donos tinham voltado para casa. Eu fui até à cozinha e fiquei a ladrar através do tecto durante uma hora inteira. Acho que eles perceberam a mensagem.”   

in “Dias Grandiosos”,  40 HISTÓRIAS de Donald Barthelme

“O novo proprietário informou os velhotes no apartamento por cima de nós (frente) de que está preparado para provar que eles não vivem realmente no apartamento, dado que são velhos e já não vivem no verdadeiro sentido da palavra “viver”, de maneira que serão submetidos a uma verificação da ocupação efectiva do espaço arrendado, a qual, caso a câmara municipal o autorize lhe permitirá recuperar a posse da casa. Levon e Priscilla tremem de medo. ”

in “O novo proprietário”,  40 HISTÓRIAS de Donald Barthelme

Scandal Sheet


Scandal Sheet (1952). Ora bem, argumento de Samuel Fuller, realização de Phil Karlson, jogo de xadrez hitchcokiano, secundários de luxo, don't trust your idols mode. Obra prima absoluta. Mais para breve.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

três curiosidades para alegrar seu dia

1. Ontem vi pela primeira vez nesta santa vida uma senhora a cortar as unhas à janela. Acto poético? Excrescências dos tempos aguçados em que vivemos? A senhora fê-lo com uma rapidez de pássaro, como quem já tem este hábito há muito. A razão penso ser esta: para quê sujar a nossa casinha, para quê poluir as águas de uma sanita, quando se pode jogar à terra o que é da terra. Um sagrado acto de devolução, ashes do ashes, garras to garras. Mas numa altura em que nos pomos a pensar o que "pensam" os objectos e os animais, e como apagar as fronteiras entre o vivo e o não vivo, pergunto-me isto: será que, tal qual uma Antonieta guilhotinada, haverá ainda um momento, logo após a extracção da unha, em que esta ainda se sente parte do corpo? E se sim, saberá ela que, no momento antes de tombar morta nas imediações do prédio suburbano, pôde (por uma vez que seja) voar e, quiçá, separar-se, de forma alegre e "consciente", de um corpo que a subjugava, que a obrigava a coçar superfícies corporais até estar atulhada de merdelim?  

2- Soube finalmente (como aquelas palavras que parecem estar à espera de nós num canto qualquer do universo), que o assassino do mais sanguinário ditador da República Dominicana, Rafael Leónidas Trujillo Molina, proferiu as seguintes palavras durante o momento em que o cravejava de simpáticas 27 balas: "Este guaraguao ya no comera mas pollito". Que é qualquer coisa como: "a partir de agora este falcão não comerá mais franguinho". Fascinante frase que mistura ornitologia, vegetarianismo e assassinato político. E soube-o ao ler este incrível livro de Junot Diaz. Frase aliás que podia bem descrever o seu estilo, entre o falcão e o frango, a seriedade da predação e a inocência da vítima.

3- Hoje ao final do dia haverá um debate no Espaço Nimas acerca desta questão dos assédios sexuais, das "velhas bêbadas", do politicamente correcto, da separação entre a moral e a estética, da opção de não ver obras de pessoas com uma vida pessoal questionável, como forma de "retaliação" social pelos seus actos. Tudo isto tem muita razão de ser e longe de mim simplificar a questão. Mas... e tendo em mente apenas esta ideia mais global do "politicamente correcto", pensei aqui um conceito-canivete que poderá ser útil no futuro. O discriminador². A fórmula matemática é mais ou menos assim: "discriminador X discriminador = discriminador²". No fundo, o politicamente correcto tem esta vontade de purificação da sociedade através de um sistema de castigo pelas suas próprias mãos: a censura social. Esse acto em dobra gera um discriminador de discriminadores, um racista de racistas. Não me oponho à coisa desde que funcione como um "agora vais ali para o canto e pensa bem no que fizeste (s)!". Mas... se a maré sobe e a coisa alastra o discriminador ao quadrado pode ver-se numa situação de polícia sinaleiro da moralidade. E nesse caso... só há uma coisa a fazer. Adivinharam: chamar os serviços do não menos implacável descriminador³

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A partir d'agora

A partir de agora já não vejo mais filmes feitos por pedófilos, racistas, violadores, assediadores, incendiários, corruptos, abusadores, raptores, pessoas que abusem de linguagem imprópria, casanovas, empertigados, pessoas com a mania que são espertas, manipuladores, gente de direita, esquerdalhos, pessoal sem opinião, políticos, neutros, brancos, negros, gordos, cheiinhos, escanzelados, mulheres com m pequeno, homens com pila pequena, anões, negacionistas e palhaços.

Ah. E também não contem mais comigo para discutir filmes de possuidores de veículos com marca BMW, Audi, Mercedes, filmes de pessoas com mau sentido de humor, de pessoas-clichés, de pessoas-crochet, e ainda todas aquelas obras idealizadas por homens, mulheres e seres humanos. 

Tirando estes, vejo todos.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Raccords do Algoritmo

Novo número da minha crónica "Raccords do Algoritmo", aqui.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Cocó na fralda


Vejam se puderem as panorâmicas e travellings sobre os membros da audiência do programa "Ellen". É maravilhoso e assustador: mulheres pulando, descontroladas, como crianças no jardim-escola. Será cocó na fralda? Comichão? Alegria frenética? Talvez tudo isso junto. Confesso que já há muito não me sentia tão inquieto, pelo menos desde a vitória daquele senhor com cabelo de troll e boca-shithole nas últimas eleições norte-americanas. É que se ele nos ensinou que depois de si até um donut pode ser eleito para o cargo de ser mais poderoso do planeta (Latour, vai buscar), estes gritinhos orgásmicos e braços no ar destas mulheres em modo TV fazem-me temer pela segunda parte deste pesadelo: Oprah.


via GIPHY

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

120 battements par minute de Robin Campillo


Uma das caras do cinema: coragem. Coragem de mostrar o que não foi mostrado. 120 battements par minute (120 Batimentos por Minuto, 2017) faz isso e por isso merece atenção. E que mais, além do estandarte histórico que carrega? O título dá-me uma pista. Os 120 batimentos são os do pulso acelerado, não necessariamente os da montagem frenética ou das cores fulgurante ao beat, mas também os da angústia pré-morte, os da indecisão de ver o corpo de um amigo/amante que acabou de falecer, os minutos em que se gastam a gritar mas ninguém parece ouvir, os batimentos da indecisão: “o que fazer?”. Campillo filma sobre esse pulsar acelerado e muitas vezes até erra: há momentos em que não acreditamos naqueles jovens belos a padecer, naquela raiva política ritmada, nos slow motions das gay parades ou das cores da noite nas discotecas.

 Mas Campillo, quando acerta, mostra esses altos e baixos de um coração individual, mas também social, que se manifesta, que solta corações de sangue improvisados no peito da indústria farmacêutica; acerta quando filma as bolachas que há para comer após a morte de mais um membro do grupo, ou o raio do sofá-cama que, logo naquele dia, tem as suas molas que se põem a gemer e não encolhe, sabe-se lá deus porquê; acerta ainda quando nos mostra os clik, claks dos estalinhos dos membros das reuniões da Act Up e com eles uma pincelada histórico-social, uma forma gaulesa – ordenada, esclarecida, engajada e contida – de viver o Público. Um Público, conquistado à civilidade e elevação, que a morte e o desespero, mesmo esses, nunca põem em risco. Campillo acerta ainda onde Entre les Murs (A Turma, 2008), que co-escreveu com Cantet, tinha acertado, na dinâmica do diálogo, de uma conversação que esgrime e faz nascer as ideias. Como se assistíssemos à paciente colocação de uma câmara colectiva que vai filmar o impossível de ver: o nascimento de uma ideia. Conversa-se e filma-se (enfim, vive-se) entre a doença e a alegria, entre a morte como momento para sentir, e a morte como momento para reorganizar o pensamento, cerrar fileiras, pois era o tempo - início dos noventas - da sida como guerra. Uma guerra em que não se morria em privado, em que as cinzas dos mortos manchavam os cocktails dos vivos. Toda esta agitação subtil passa sob a forma de filme histórico que nos vem morder os calcanhares de tão próximos ainda que estamos, um filme em que o cinema é esse monitor amargo, a retardar tudo, a medir tudo. Cardíaco e bélico.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Last Flag Flying de Richard Linklater


Começo com um pormenor: esta imagem corresponde a um breve plano de passagem no qual o corpo do jovem soldado Larry, morto no Iraque, é colocado a bordo de um comboio a caminho de Portsmouth para ser enterrado junto da mãe.  Esse é o desejo do pai, o ex-marine Larry Shepard (Steve Carell), contrariando os protocolos militares que preparavam um funeral com honras de estado no solo sagrado de Arlington, em cemitério destinado aos grandes heróis da nação. No plano, o caixão está dentro do comboio - não o vemos, ainda - e apenas assistimos aos gestos muito lentos e coreografados dos oficiais fazendo continência ao corpo (despedindo-se). Ao mesmo tempo que as mãos sobem mecânicamente até aos sobrolhos ouvimos os resfolegares próprios dos comboios parados nas estações. Nesse instante, Linklater aprofunda uma ideia que já tinha deixado entrevista: a instituição militar norte-americana como uma espécie de impotente animal mecanizado, cansado, lento, torpe pelo peso das suas convenções. Ou por aquilo que Linklater chama de "lubrificante social", ou "little white lies", que fazem a sociedade girar.

 Last Flag Flying (Derradeira Viagem, 2017) tem essa roupagem de comentário social - fala-se das mentiras militares, da hipocrisia dos políticos, do desespero movido a álcool, sexo e drogas dos soldados de um Iraque como repetição de um Vietname. Tem aliás a dada altura, um esqueleto simbólico que coloca em cada um dos ombros da personagem de Carrel os seus amigos e companheiros de travessia, um diabinho e um anjinho ex-militares a sugerirem-lhe o que há-de fazer. O primeiro nunca casou, tem um bar onde se embebeda diariamente e quer viver o presente a toda a velocidade, pisando tudo o que o afaste da dureza da verdade. O segundo é um ex-drogado-alcoólico-agora-padre, preferindo os confortos da espiritualidade. Linklater vai filmar a viagem dos três amigos, com o caixão do filho do primeiro - uma espécie de inverso de 3 Godfathers (Os 3 padrinhos, 1948) de John Ford - e aproximar-se daquilo que faz de Linklater um bom cineasta. O interesse por filmar encontros de pessoas que viveram algo em comum no passado, encontros nos quais a passagem do tempo se funde num misto de nostalgia e até anacronismo. Boyhood (Boyhood: Momentos de Uma Vida, 2014) e a passagem do tempo, a sua before trilogy, falam disso, mas também o último dia de escola de Dazed and Confused (Juventude Inconsciente, 1993) , ou o retorno aos anos 80 e à entrada na idade adulta de Everybody Wants Some!! (Todos Querem o Mesmo, 2016). Talvez por isso, agora, a personagem do anjinho (Laurence Fishburne), que quer constantemente partir mas que vai sempre acabando por ficar, se torne tão exemplificativa do sentimento do universo linklateriano. Uma lucidez que quer fazer avançar, mas uma nostalgia que vai permanecendo... Como esta viagem dos três amigos que, apesar de derradeira, se vai saboreando aos poucos, como se fosse interminável. Não por acaso os langorosos planos de comboio, não por acaso as peripécias que vão adiando o fim, a meta, desta travessia de amizade e da memória. E quando lá chegamos é como se nunca tivéssemos partido. São essas as alegrias (mas também as penas) da memória.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Assédio sensual

Afinal, estas 100 senhoras chegaram à seguinte conclusão: "parece que quando é assédio sensual, ninguém leva a mal".

sábado, 6 de janeiro de 2018



















Entretanto, já vi também The Disaster Artist (**) e Last Flag Flying (***).

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018


quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

The Killing of a Sacred Deer (2017) de Yorgos Lanthimos

Um coração vivo pulsa em grande plano e ouvimos o Stabat Mater de Franz Schubert. Haverá forma mais in your víscera de começar um filme? Ou melhor, de nos sinalizar que o que se seguirá é um filme do peito e que irá tocar o mais íntimo, o mais profundo de cada um de nós? Momento de pausa para pensar: é um filme do grego Yorgos Lanthimos, o que significa que, para desgosto das comadres cassavetianas, nas próximas duas horas, com muita probabilidade, se iria trocar a singularidade das personagens pela bizarria das situações. Quereis ver então, caro espectador, que nos primeiros segundos de The Killing of a Sacred Deer (O Sacrifício de Um Cervo Sagrado, 2017) já podíamos dizer com quase toda a certeza que iríamos caminhar pelo filme a quatro patas, feitos sagrados cervos?


Bom, a resposta a esta questão é... não sei. A câmara vai recuar e nós vamos ver uma operação real ao coração que serve para nos ambientarmos com o trabalho do nosso protagonista, o cirurgião cardíaco, Steven Murphy (Colin Farrell). Ao longo de todo o filme vão elogiar muito as magníficas mãos do médico, mãos que poderão dar a vida ou dar a morte. Se todo o filme é sobre isso, sobre a mão vingadora e a mão reparadora, não há como não pensar logo naquela imagem famosíssima que Walter Benjamin utilizou em "A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica", acerca da distinção entre a magia e a cirurgia. Enquanto o primeiro mantinha uma certa distância para curar (uma certa autoritas), o segundo penetrava a fundo no organismo, fazendo depender essa salvação de uma proximidade brutal com a coisa em si. Benjamin queria falar dessa forma diversa de abordar o mundo proporcionada pelas distâncias e planos gerais da pintura, por contraponto com o close up da víscera, a capacidade do aparelho cinematográfico cortar nas entranhas do real.

Se é verdade que vamos entrar a fundo no quotidiano (e na catástrofe) do nosso cirurgião - ao contrário do filme anterior, The Lobster (A Lagosta, 2015), aqui um homem bem casado (Nicole Kidman), e com dois filhos fofíssimos -, não podemos dizer que Lanthimos siga a ideia benjaminiana do cinema como penetrador do real. Pelo contrário, todo o suspense clínico do filme se vai instalando em planos muito abertos e afastados dos personagens - salas e corredores muitas vezes vistas de cima, redomas intermináveis. A dada altura, falando-se da possibilidade de Steven ter cometido um erro fatal com um paciente, este responde que não são os cirurgiões que matam, mas sim os anestesistas. E se há palavra para descrever todo este thriller trágico, absurdo, bíblico, é a anestesia. Os personagens parecem incapazes do choro ou de foder a não ser simulando uma anestesia geral sobre o leito. As cenas de quarto entre Farrell e Kidman lembram um Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999) em que o fumo dos charros e o sexo fetichista tivessem sido substituídos por uma cortina de anti-naturalismo que vai anestesiando, primeiro a expressividade dos actores, depois o corpo das personagens e, finalmente, o próprio espectador.

A música em acordes dissonantes vai manchando o ordinário dos diálogos sobre vestidinhos pretos e presilhas de relógios de pulso, preparando a caminha da bizarria que se abaterá sobre as personagens. O filme parece caminhar lento para o abismo, cortando, cirurgicamente, todos os traços do humor negro que os filmes anteriores do cineasta grego ainda tinham. Colin Farrell é aqui bem o mensageiro dessa anestesia de um corpo e de uma emoção, todas as palavras proferidas com uma frieza que antecipa, algures, o desastre. Se bem se recordam, na cena final de Lobster, Farrel já entrava nesse modo, esperando o espectador que este cegasse como Édipo. Aqui, os actos sacrificiais trágicos continuam, tendo o próprio título sido recuperado no final da tragédia, "Ifigénia em Áulide" de Eurípedes. Mas no desfecho das tragédias, a empatia com as dores do protagonista contra o mundo malsão sempre foi característica chave. Que é feito dessa empatia na obra de Lanthimos? Tudo se vai tecendo, normalmente, com a complexidade sem explicação do destino cruel e resta-nos descodificar o puzzle vertido em metáfora de um absurdo da vida. Pouco resta para a lágrima da emoção, para investigar os affaires dos coração.

E talvez esteja aqui nesse conflito, a originalidade do cinema de Yorgos Lanthimos: a oscilação entre um cineasta-cirurgião e um cineasta-anestesista. O primeiro quer entrar, abrir o coração como quem desmonta um relógio para ver como funciona, fazer funcionar a catarse da tragédia e mover a roda hitchcokiana (duas outras personagens que escondi propositadamente, uma mãe e um filho, evocam a família Bates). O segundo tudo enxerga ao longe, cínico e laboratorial, com esse propósito de adormecer hanekianamente o real, até que ao espectador lhe cedam as pernas, subitamente, inexplicavelmente. Até já não sentir nada.

Contudo, como esse veado fugidio que só se deixa ver no fundo furtivo de alguns planos de The Killing of a Sacred Deer, aqui a mensagem parece saltar para o arrière-plan, ficando nós a braços com o peso de umas mãos. Umas mãos de cirurgião que, como os antigos imperadores, podiam fazer viver ou podiam fazer morrer.

O primeiro filme que vi este ano foi Detroit da Kathryn Bigelow. Pareceu-me frequentemente melhor do que o anterior, Zero Dark Thirty. Mas o mixed feeling continua: um certo talento cinematográfico mas que se deixa muitas vezes devorar pela sua ambição Sandra Felgueiras. Aqui isso volta a acontecer. Concordo por isso em parte com o Richard Brody quando salienta que, em Detroit, muitas personagens são meros fogachos em busca de um certo sentimento de culpa e pena pós-colonialista. Ele não o diz exactamente assim, mas é esse o subtexto do statement que impulsiona o filme. Já quando Brody se arroga em moralista, falando da "ousadia" de Bigelow ao colocar os seus actores na posição de encenarem de novo todo aquele horror, parece que foi mordido pelo mosquito do PC (leia-se, politicamente correcto). Então mas agora, da abjecção do Rivette é suposto fazermos uma interpretação ab-rogante? Uma que ponha em causa os fundamentos de reenactement do próprio cinema? Valha-me a santa. Parece que nem o canto religioso do final - uma facilidade redentora (q.b.) - de um dos sobreviventes do massacre do motel de Algiers acalma a turba linchadora. Dito isto, Bigelow fez-me sentir revoltado, ultrajado e outros sinónimos. Além disso, ou ao lado disso, Detroit é um filme dramaticamente envolvente, por vezes com um desnorte sensorial que é tudo menos uma dispersão. Will Poulter enquanto monstro de serviço pôs-me a pensar no seu grande talento. Creio que vai escalar rápido.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Que incrível foto da visita da família Trump ao Vaticano. Tudo à mostra: um sorriso encadeado pelo poder, duas mulheres empalhadas, um anfitrião desolado.